segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Crónica: “A Praxe na Primeira Pessoa”

Dizem os entendidos na matéria, que só pode falar de praxe quem a viveu, quem a sentiu, quem deixou que ela lhe chegasse ao coração. Foi isso que fiz: infiltrei-me na praxe de Engenharia Electrotécnica da Faculdade de Engenharia da Universidadedo Porto (FEUP) e, por alguns minutos, fui caloira.
Não foi preciso rastejar, nem andar com orelhas de burro feitas de cartolina, nem de cara pintada, nem gritar até ficar sem voz,nem sequer fui insultada porque na FEUP o caloiro não é um palhaço de quem todos se riem, é antes alguém que precisa de ser ensinado, que tem de aprender a dar valor à faculdade e a ter orgulho no seu curso.
Ao entrar na FEUP, não foi difícil descobrir onde andavam os caloiros de "electro", bastou chegar ao bar dos alunos e perguntar a um dos muitos estudantes trajados se conhecia algum "doutor" do meu novo curso. À minha pergunta, responderam com um sorriso malandro e um brilho nos olhos - "Porquê, és caloira?”
Um minuto depois, tinha um "doutor de electro" à minha frente: "Mas o que é que esta caloira está aqui a fazer? Todos os teus colegas estão a ter aulas... já estás inscrita nos horários?" Precisei de alguns segundos para me recompor. O quê? A praxe é ir às aulas e ter os doutores a levarem os caloiros à secretaria para se inscreverem nos horários? Pois a resposta é sim, a praxe também é tudo isso!
Não foi preciso assistir à aula de sistemas digitais, porque quando lá cheguei os caloiros estavam a posicionar-se para percorrer a faculdade até ao local onde fomos praxados, sempre nas instalações da FEUP. A minha companheira foi-me dando algumas dicas. "É a primeira vez que vens? Temos estado em praxe desde a semana passada, já aprendemos o hino da FEUP e ouvimos os discursos dos doutores sobre a praxe e o espírito de engenharia." Explicou-me o que era a auto-contagem, como cumprimentar um veterano e como "dizer" sim e não (zurrando) "porque os caloiros não sabem falar”.
Mulheres à frente, homens atrás, os 100 caloiros alinharam-se para ouvir os veteranos. "Ó pá, a última fila que se chegue mais para a frente porque estão ao sol", pediu o doutor que preside à praxe e que se apresenta com uma colher de pau em tamanho gigante na mão, adornada com várias fitas cor de tijolo (a cor de engenharia)."Estão-me todos a ver e a ouvir? Então vamos lá cumprimentar os veteranos aqui presentes. Toda a gente sabe o que tem de dizer?”
Algumas mãos tímidas erguem-se e o doutor concede dois segundos para que os colegas do lado possam ensinar aos mais esquecidos. Em uníssono, ao sinal da colher de pau, os caloiros gritaram "Ave veteranorum praxeturi te salut". As vozes afinadas e bem ensaiadas mostram bem que a praxe não serve para humilhar mas sim para transmitir conhecimentos aos novos estudantes, para que se integrem no espírito da faculdade.
Depois das saudações, seguiu-se uma aula sobre a importância do traje, lamentando o doutor o facto de não haver nenhum modelo feminino, mas "em electro as mulheres são raras". Sentados no chão, "sem cruzar os cascos", ou seja, sem cruzar as pernas e as mãos, os caloiros ouviram com atenção o discurso do gurú: "Ser engenheiro é ter a capacidade de se desenrascar, não é só tirar boas notas, é conviver com os colegas, arranjar apontamentos, ir às aulas, sim porque é muito importante assistir às aulas!", afirmou o colher de pau, sugerindo ainda aos caloiros que comprassem o kit caloiro, "que só custa cinco euros", para que pudessem desfilar na rua e na faculdade com a 'T-shirt' de "electro", porque "esta é a melhor faculdade e 'electro' o melhor curso e disso temos de nos orgulhar".
Os caloiros não foram para a aula de programação sem antes mostrarem que têm cordas vocais de engenheiros! "EEEEeeeeee......lectro" foi ensaiado com garra, alma e orgulho na voz, sinónimo de que os alunos do primeiro ano, mais do que caloiros, são os colegas mais novos, a quem doutores e veteranos devem transmitir o espírito de ser estudante universitário.


Por CATARINA LÁZARO 
Domingo, 05 de Outubro de 2003

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